Gaúcha conta como ‘ouvido biônico’ a fez renascer após 15 anos de surdez

Gaúcha conta como ‘ouvido biônico’ a fez renascer após 15 anos de surdez

RIO — Quinze anos da vida da gaúcha Paula Pfeifer foram vividos em um silêncio irritante e cansativo.

Entre os 16 e os 31 anos, ela passou da surdez severa para a profunda, os dois piores estágios da deficiência auditiva. Nesse período, deixou de falar ao telefone, ficar sozinha em casa e ligar o rádio. Só entendia o que as pessoas falavam porque virou especialista em leitura labial — técnica que começou a desenvolver ainda criança, quando os primeiros sinais do problema apareceram. Mesmo assim, isso não a ajudava em conversas de grupo, quando é impossível prestar atenção em todas as bocas. Única deficiente auditiva da família, ela se acostumou a condicionar a vida à ausência do som. Na hora de escolher uma faculdade, por exemplo, optou por Ciências Sociais porque não precisaria depender da audição. O conceito de decibéis só voltou a fazer sentido para ela quando, três anos atrás, um implante coclear abriu seu ouvido direito para o mundo.

 

— Ser surda era muito cansativo emocionalmente. Uma frase famosa de uma escritora que é cega e surda, chamada Helen Keller, diz que “a cegueira nos afasta das coisas, mas a surdez nos afasta das pessoas”. É assim que eu me sentia, isolada — lembra ela, hoje aos 34 anos. — Surdez é uma deficiência invisível, por isso pouco se discute sobre ela. Demorou para que algum médico me falasse sobre implante coclear, e isso acontece porque falta muita informação. Digo, sem medo, que renasci no dia em que fiz o implante. Quatro meses depois, eu já estava ouvindo realmente bem e passava horas na janela só escutando os passarinhos cantarem.

As epifanias diárias que o implante — ou “ouvido biônico”, como também é chamado — lhe proporcionaram estão relatadas no recém-lançado “Novas crônicas da surdez”, que ela publica três anos após seu primeiro livro, o “Crônicas da surdez”, um retrato de sua vida entre o silêncio e aparelhos auditivos que pouco ajudavam.

Infográfico mostra como funciona o implante coclear – Editoria de Arte

Médico e professor adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia e Oftalmologia da UFRJ, Jair de Carvalho e Castro, que escreve a contracapa do livro de Paula, destaca que ainda há um longo caminho a percorrer para pôr fim ao estigma que cerca a deficiência auditiva.

— A população sabe pouco sobre surdez. O nome da deficiência é visto com sentido pejorativo. A batalha, daqui para frente, tem que ser retirar a carga de preconceito associada ao uso de aparelhos auditivos e implantes, outra é baratear os custos — analisa.

No Brasil, são feitas 800 cirurgias anuais de implante coclear,o que é considerado pouco para o tamanho da população. Estima-se que existam por aqui cerca de 2 milhões de pessoas com surdez severa, por exemplo. A estatística é do último censo do IBGE e se refere a quem tem dificuldade para ouvir ou não ouve absolutamente nada.

‘EU OUÇO COM O CÉREBRO’

Quem tem surdez leve ou moderada costuma viver bem com aparelhos tradicionais, que amplificam o som ao redor e o levam até a cóclea doente. Mas quando a deficiência é grande, a melhor opção tende a ser o implante coclear, que faz, por meio de eletrodos, o que a cóclea não consegue fazer.

— Eu ouço com o cérebro, não com o ouvido — diz Paula.

Nem todas as pessoas podem se beneficiar do implante. E, entre as que podem, nem todas alcançam um bom resultado depois da cirurgia. O procedimento é indicado para os jovens e adultos que já ouviram e, por isso, se comunicam pela fala, como era o caso de Paula. Ou para quem nasceu sem ouvir, mas pode fazer a cirurgia ainda bebê. O ideal é realizar o implante entre os 6 meses de vida e os 2 anos de idade, para aproveitar a alta plasticidade do cérebro. Quem é implantado nesse período da vida tem um desenvolvimento igual ao das outras crianças. Acima dos 4 anos, o resultado passa a ser pobre. E, acima dos 7, ruim.

— Normalmente não se indica o implante para aquela pessoa que nasceu surda, mas já é adulta e se comunica por sinais. Ao colocar o implante, o ouvido dela até vai captar o som, mas ela não vai entender aquela informação porque seu cérebro já perdeu a capacidade de assimilar isso. Então, no fim das contas, ela não vai ser capaz de ouvir e isso vai gerar frustração — explica o médico Arthur Castilho, coordenador do programa de implante coclear do Hospital das Clínicas da Unicamp, um dos 27 centros do SUS que realizam a cirurgia.

VERGONHA DE USAR APARELHOS AINDA É GRANDE

Em seu dia a dia sempre às voltas com o tema, Paula conta já ter visto criança surda tratada pelo pediatra como autista, por interagir pouco com os outros. A falta de médicos, fonoaudiólogos e psicólogos especializados em surdez chama atenção da moça, que hoje é, ironicamente, casada com um otorrinolaringologista.

Dando palestras pelo país, participando de congressos, lançando livros e alimentando um blog sobre o assunto, Paula luta para convencer as pessoas de que o uso de aparelhos e implantes não deve ser motivo de vergonha.

— Quando vejo um aparelho bege, tenho vontade de pisar em cima! — brinca ela. — Não é preciso esconder. Por isso eu só uso aparelho com capa de oncinha, adesivos, brilho. É para ser visto como um acessório lindo, que permite aos surdos uma vida cheia de experiências.

CURIOSIDADES

Não existe “percentual de audição”

É comum ouvir por aí que alguém tem, por exemplo, 30% da audição no ouvido direito e 50% no esquerdo. Só que é simplesmente impossível quantificar isso. O ouvido humano capta faixas de frequência, então uma pessoa pode ouvir bem sons graves, mas quase não escutar sons agudos. Assim, não se pode traçar um percentual para a perda auditiva.

Surdos podem falar

Quando se pensa em deficientes auditivos, a primeira coisa que vem à cabeça é Língua de Sinais. Mas esta é a comunicação apenas dos chamados sinalizados. Além deles, há os oralizados, que são ou aqueles que nasceram escutando e, por isso, aprenderam a falar normalmente, ou aqueles que nasceram sem audição, mas fizeram implante coclear ainda bebês.

Resultado do implante não é imediato

Os pacientes não saem da cirurgia escutando. Entre o dia da realização do implante até a sua ativação pelo médico demora, em média, 30 dias. Depois disso, a adaptação do cérebro aos novos estímulos leva alguns meses.

Implante nos dois ouvidos não era permitido há um ano

Foi só em uma portaria do Ministério da Saúde de dezembro de 2014 que ficou estabelecido que as pessoas têm direito de fazer o implante nos dois ouvidos. Até então, o SUS só cobria uma cirurgia por paciente, que tinha que escolher de que lado queria ouvir.

Teste da orelhinha virou obrigatório em 2010

Assim como o famoso teste do pezinho, o da orelhinha deve ser realizado ainda na maternidade, pouco depois de o bebê nascer. A obrigatoriedade entrou em vigor em 2010, mas até hoje muitas gestantes desconhecem o exame e muitos hospitais não o realizam adequadamente. O teste da orelhinha é o primeiro passo para verificar a audição da criança.

Todo plano de saúde tem que cobrir o implante

Uma decisão da Justiça Federal em 2013 obrigou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a garantir que os planos de saúde privados do Brasil façam o implante coclear. O custo poderia chegar a mais de R$ 50 mil caso o paciente tivesse que pagar por conta própria.

Manutenção e troca de implante não são cobertas

Assim que a pessoa faz a cirurgia, ela recebe o que é chamado de unidade externa do implante — aquela que fica encaixada na orelha. Mas, se o aparelho quebrar ou sumir e a pessoa precisar de outro, terá que arcar com os custos. Os aparelhos mais avançados chegam a valer R$ 30 mil.

Não se pode deduzir gastos do imposto de renda

Quem precisar comprar um aparelho tradicional ou aquele que é parte do implante não poderá ter o valor deduzido do Imposto de Renda. A lei só garante isso para a compra de próteses mecânicas, cadeira de rodas e aparelhos ortopédicos.

Existem implantes com tecnologia de ponta

As versões mais novas permitem que a pessoa configure o aparelho de modo que ela consiga passar ao lado de uma britadeira sem ouvir tanto barulho. Ou que possa falar normalmente ao telefone em meio a um show de rock. Isso só é possível porque o aparelho consegue equalizar os sons, evitando que a pessoa escute decibéis muito altos. Também dá para conectar com computador, TV e celular, para ouvir música sem fone, por exemplo. Por essas e outras, o implante coclear é chamado de “ouvido biônico”.

Fonte: O Globo

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